Tenho tentado não ser muito crítico com meus textos. Há pouca edição e as idéias vão surgindo de forma meio desorganizada. Mas se eu não "colocar no papel" essas idéias vão acabar se perdendo, como tantas outras que ficaram para trás. Por isso peço desculpas pelo caos dessa versão final. No final, a música culpada disso aí.
Que Deus me purifique com um relâmpago na cabeça se o que contarei aqui é mentira. Minha pobre mãezinha, que a terra floresça onde ela está enterrada, puxaria minha orelha até o vermelho ficar roxo se me pegasse numa mentira. Não é mentira, juro. Este é meu leito de morte, não há mais porque mentir.
Se naquele final de maio de 67 eu soubesse quem era o negão hippie que entrou no meu táxi... Juro que faria o possível pra devolver as coisas que o cara esqueceu no banco traseiro do meu ganha-pão. Mas eu não sabia! E não poderia saber mesmo, no meu rádio só se ouvia notícias do trânsito e a glória ao nosso bom senhor Jesus Cristo, aleluia.
Era final de tarde, estava me sentindo meio doente e me preparando para levar o carro pra garagem quando o hippie fez sinal pra mim. Carregava um violão, ou uma guitarra, pendurada nas costas, e mais algumas outras coisas dentro duma malinha que não dei muita bola. Admito que pensei duas vezes antes de parar, que Deus me perdoe, mas para um senhor respeitável, bom freqüentador da Primeira Igreja Batista do Santo Louvor Norte-Americano, não seria recomendável ouvir o que alguém desse pessoal teria a dizer. Mas a culpa por estar sendo preconceituoso pesou mais; parei ao lado e perguntei pra onde ele ia.
O negro hippie agradeceu, entrou no carro, ajeitou a malinha embaixo do banco e o violão, ou a guitarra, em cima das pernas, disse que ia pro hotel marcado no cartão, e me estendeu o tal cartão.
Era longe, mas era um bom hotel. Pelo retrovisor dei uma olhada na pessoa, e vi um jovem bastante animado e sorridente por trás daquela figura colorida e o cabelão que cobria parte da minha visão. Ele parecia querer falar, mas estava algo receoso. Sou taxista, sei dessas coisas, então mandei a isca pra ele, perguntei sobre o violão, ou a guitarra. Ele sorriu mais ainda e falou tudo que queria.
Ele se apresentou, mas não guardei o nome; no final do dia podia jurar que se chamava Ray Joe. Falou que era músico e que tinha acabado de registrar a última música pro seu próximo disco, que sairia em breve. Ele estava particularmente feliz com o que tocou no violão, ou na guitarra, no final de algo chamado Little Wing; disso lembrava bem, pois era uma canção sobre seu anjo da guarda. Lembro dele falar feliz que era a coisa mais bonita que já havia composto, e que só podia mesmo ser a ação do seu anjo da guarda ali, o conduzindo, totalmente sozinho no estúdio. Disse que se não tivesse gravado em fita nunca mais conseguiria reproduzir aquilo, de tão belo e perfeito resultado. Segundo ele eram mais de cinco minutos das melodias mais bonitas que eu jamais ouviria.
Estávamos chegando ao hotel quando a chuva caiu. Forte e densa, difícil de enxergar a rua. Aquele final de dia não conservava mais quase nenhuma luz do sol, e eram os faróis e postes que brilhavam entre as gotas d’água. Parei em frente ao prédio, recebi o dinheiro do hippie, pouco amassado, na verdade, e ele saiu correndo para se proteger da água, carregando o violão, ou a guitarra, de modo a não molhar muito.
Mas acabou esquecendo a malinha.
Naquela noite cheguei em casa gripado, e pela madrugada já estava com uma forte pneumonia. O médico me atendeu em casa, e me mandou ficar cinco dias descansando, longe do táxi e de qualquer serviço. E longe da malinha.
Ao final daquelas férias forçadas, quando voltei a ver o táxi, vi a malinha lá dentro. Sem lembrar a qual passageiro pertencia a guardei em casa, sem nem abrir, esperando pela reclamação do esquecido. Que não veio. Nem naquela semana, nem no mês seguinte. Nem no restante do ano. Foi esquecida pelo seu dono e, muito bem guardada, acabou sendo esquecida também por mim.
Meses atrás, rodeado de bisnetos, fui apresentado às maravilhas da nova TV de alta definição. Um disquinho prateado num aparelho fez surgir na tela aquele negro hippie segurando uma guitarra; com certeza uma guitarra. De forma muito nítida a lembrança veio inteira na cabeça. Era um documentário e, numa das entrevistas, um senhor falava sobre as proezas realizadas por aquele jovem guitarrista, mas como a sua criação mais impressionante havia se perdido nos últimos dias de maio de 67. A lenda era a de que Jimi Hendrix havia saído do estúdio com as fitas originais da gravação e as perdido no caminho até o hotel, sem saber exatamente onde. Todas as músicas foram regravadas idênticas, com exceção de uma, que o guitarrista não conseguia mais reproduzir.
Tive que procurar pouco. A malinha ainda estava no porão de minha casa. Dentro vários rolos de gravação, apodrecidos pelo tempo e embolorados pela umidade. Sem qualquer chance de restauração, disse um especialista a quem mostrei.
Trinta anos depois me responsabilizo um pouco pelo que aconteceu. E hoje, ao ouvir Little Wing, música que se tornou a canção tema de meus últimos dias, a curiosidade voa quando aos dois minutos e pouco o fading out corta a música abruptamente. O hippie havia dito “mais de cinco minutos das melodias mais bonitas que eu jamais ouviria”. E eu realmente jamais ouvi. Eu e o mundo todo.