
Uma revista aberta na cadeira também chama sua atenção. A manchete, de dois anos atrás, exclamava o sucesso de uma adaptação literária voltada ao público feminino para o cinema. Tendo desviado sua atenção da porta por apenas alguns instantes, não viu o vulto se aproximando, e só notou que o alguém entrava quando ouviu os sininhos pendurados em cima do batente.
A capa preta, algo esfarrapada, pingava no chão branco e encerado da recepção enquanto o visitante se adiantava até o balcão. O rosto parcialmente escondido pela capa molhada. Estupefato, o funcionário não reagiu de forma apropriada, apenas observou a figura pálida, vestida claramente para o século errado, se aproximar deslizando; não caminhou, deslizou pelo chão frio.
Em dúvida optou pelo básico.
- Pois não? Em que posso ajudar o senhor?
- Eschte é um banco de changue, correto, meu chovem?
“Ele tinha dito ‘meu jovem’?”, questionou em pensamento o funcionário. E que sibilação toda era aquela? Causou certo espanto cômico. A capa ainda cobrindo parte do rosto do visitante.
-Sim, senhor, somos um banco de sangue – começando a sentir o cheiro fraco, mas presente, de antiguidade, de coisa guardada a muito tempo em um porão, ou sótão. Vinha da pessoa, mas não era seu hálito.
- Poich então, eu goschtaria de efetuar uma retirada.
Agora mais estupefato com a cena absurda o funcionário não conseguiu conter os fluxos de pensamento que transbordaram sua mente. Milhões de hipóteses mirabolantes surgiram e se desvaneceram em sua cabeça em milésimos de segundo. Explicações convincentes simples e complexas se formaram numa torrente e foram traduzidas por:
-Hein?
-Chim, uma retirada. Ischo é um banco, não é, meu chovem?
“Ele disse ‘meu jovem’ realmente!”, percebeu. E não achou honestamente que precisaria explicar de fato que tipo de banco era aquele. A boca abrindo e fechando sem encontrar o que dizer. Mas balbuciou alguns sons incoerentes.
- Creio que doischs litrosch serão sufischientesch, obrigado.
Os olhos arregalados do funcionário então notaram a figura da pessoa. Extremamente branco, rugas salientes e olheiras enormes e arroxeadas. A capa cobria parte do rosto ainda, mas o nariz pontiagudo e comicamente grande fazia brotar uma elevação no tecido. E aquele sotaque todo esquisito era claramente forçado. Provavelmente estava com algum tipo de dentadura na boca.
E então entendeu. Era uma piada. Claro, devia estar sendo filmado de algum lugar. Era a única explicação plausível. Resolveu entrar na brincadeira.
- O senhor já é cliente? Posso ver seus documentos?
O visitante noturno pareceu confuso.
- Veja, se o senhor ainda não é cliente, podemos abrir uma conta agora mesmo. É necessário um depósito inicial, e preciso de cópias dos seus documentos e comprovante de endereço.
Surpreso, mas mantendo a capa diante do rosto, o visitante ficou visivelmente alterado.
- Meu chovem, ouça, eu não quero deposchitar. Quero fazer um schaque, compreende?
- Sim, mas se o senhor não tem conta conosco de onde vou tirar esse sangue? Não posso retirá-lo da conta de outro cliente, correto? – E deu uma risadinha amistosa, forçando a cumplicidade com o “cliente”, sempre olhando em volta em busca da câmera escondida. Julgou seu desempenho bastante bom para uma primeira vez.
- Meu chovem! – exclamou sibilante o visitante, levantando os braços com as duas mãos abertas no alto deixando o rosto, e os caninos pontiagudos, totalmente visíveis pela primeira vez. – Dê-me o changue que nescheschito! Facha scheu trabalho!
Começando a ficar irritado com aquele Nosferatu picareta, o funcionário perdeu um pouco do bom humor e, mentalmente, registrou o quanto era fraca aquela imitação. Podiam ter arrumado um ator que não fosse tão baixinho, pelo menos.
- Se o senhor não tem conta não é possível fazer uma retirada, agora, por gentileza, saia da fila para que eu possa atender aos outros clientes - e apontou para a recepção vazia.
- Eu demando rechspeito! Vochê shabe com quem eschtá falando, meu chovem? Eu chou o Prínchipe das Trevasch, o Conde Impalador, o Terror do Leschte Europeu!
- Sim, sim, nós atendemos a todo tipo de celebridade. Mas retirada só se o senhor tiver conta.
O visitante então praguejou diversas coisas em alguma língua inventada, gesticulou amplamente, sibilou e rugiu um pouco, mas diante da face impassível do funcionário do banco de sangue só pode arregalar os olhos e virar-se na direção da porta. Enquanto deslizava para fora o funcionário o ouviu reclamar.
- Che modernijar, che adaptar ao novo mundo, não pode continuar tão antiquado, dizem elesch. É fáchil para eles lá em Forksch. Eu vou é voltar para a Romênia! – E saiu pela porta de vidro para a noite escura e úmida, ainda gesticulando bastante.
O funcionário sorriu para o que ele achava ser o final perfeito e perguntou para ninguém – Fui bem? Hein? Podem aparecer! Alô? – E sem nenhuma resposta, tirando o rádio que ainda soava no fundo do corredor, o entendimento veio inteiro, os olhos se arregalaram e fitaram o vulto pequeno no outro lado da rua saltando para a garganta do vendedor de hot-dogs.